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ESTUDO ANATÔMICO DO TERÇO PROXIMAL DO FÊMUR: IMPACTO FEMOROACETABULAR E O EFEITO CAM

PEDRO JOSÉ LABRONICI, SERGIO DELMONTE ALVES, ANSELMO FERNANDES DA SILVA, GILBERTO RIBEIRO GIUBERTI, ROLIX HOFFMANN, JUSTINO NÓBREGA DE AZEVEDO NETO, J

ESTUDO ANATÔMICO DO TERÇO PROXIMAL DO FÊMUR: IMPACTO FEMOROACETABULAR E O EFEITO CAM

PEDRO JOSÉ LABRONICI, SERGIO DELMONTE ALVES, ANSELMO FERNANDES DA SILVA, GILBERTO RIBEIRO GIUBERTI, ROLIX HOFFMANN, JUSTINO NÓBREGA DE AZEVEDO NETO, JORGE LUIZ MEZZALIRA PENEDO

Rev Bras Ortop. 2009;44(2):120-4

 

Resumo

Objetivo: Analisar as variações anatômicas da extremidade proximal do fêmur que pudessem desenvolver o impacto femoroacetabular. Métodos: Foram utilizados 199 espécimes anatômicos de fêmures esqueleticamente maduros. Os fêmures foram medidos para determinar o ângulo da anteversão do colo femoral, ângulo cervicodiafisário, esfericidade da cabeça femoral em ântero-posterior e súpero-inferior, ângulo entre a epífise e o colo femoral anterior, ângulo entre a epífise e o colo em perfil, distância em ântero-posterior a 5mm da junção cabeça e colo e distância em ântero-posterior da base do colo. Resultados: Observou-se que o subgrupo com impacto apresentou diâmetro da junção a 5mm (p = 0,0001) e cam-cabeça (%) (p = 0,0001) significativamente maiores e base-cam (%) (p = 0,0001) significativamente menor que o subgrupo sem impacto. Identificou-se que cam-cabeça (%) = 80 e base-cam (%) = 73 foram os pontos ótimos para o impacto. Conclusão: O estudo mostrou que o efeito cam, causado por variações anatômicas da extremidade proximal do fêmur, se concentrou na junção cabeça-colo e base do colo-junção cabeça-colo. Esses índices podem ser fatores preditivos do impacto.

Descritores - Osteoartrites do quadril; Articulação do quadril/ patologia; Femur.

 

1 - Doutor em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina; Chefe de Clínica do Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Prof. Dr.
Donato D'Ângelo - Hospital Santa Teresa, Petrópolis/RJ, Brasil.
2 - Médico Responsável pelo Grupo de Quadril do Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Prof. Dr. Donato D'Ângelo - Hospital Santa Teresa, Petrópolis/RJ, Brasil.
3 - Médico Residente em Ortopedia e Traumatologia do Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Prof. Dr. Donato D'Ângelo - Hospital Santa Teresa, Petrópolis/RJ, Brasil.
4 - Médico Residente do Grupo de Quadril do Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Prof. Dr. Donato D'Ângelo - Hospital Santa Teresa, Petrópolis/RJ, Brasil.
5 - Médico Assistente do Grupo de Cirurgia do Quadril do Instituto Nacional de Traumatologia Ortopedia (INTO), Rio de Janeiro/RJ, Brasil.
Trabalho realizado no Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Prof. Dr. Donato D´Ângelo, Hospital Santa Teresa, Petrópolis, RJ e Faculdade de Medicina de Petrópolis,
Petrópolis, RJ, Brasil.
Correspondência: Av. Roberto Silveira, 187, apt. 601 - 25685-040 - Petrópolis, RJ. Tel.: (24) 2242-5571. E-mail: plabronici@globo.com

INTRODUÇÃO

A osteoartrose primária do quadril, também conhecida como idiopática, pode ser secundária a causas mecânicas. O impacto femoroacetabular é a causa mais comum nos estágios finais da osteoartrose, tanto nos quadris no gênero masculino como no feminino(1,2). Nos quadris com ausência de displasia, a causa da coxartrose tem sido sugerida ser um microtrauma repetitivo da região cabeça-colo do fêmur contra a borda acetabular(3). Isso levaria ao efeito cam, na qual a região entre a cabeça-colo femoral aumentada choca com a borda do acetábulo.

Vários autores têm citado relação entre a coxartrose e desvio da cabeça femoral, chamado de deformidade em pistol-grip, e a diminuição da anteversão do colo femoral(4-7). Nessas circunstâncias, a redução do espaço pode causar impacto em flexão e, particularmente, em rotação interna. Esses achados podem ser vistos nas radiografias em ântero-posterior verdadeiro ou incidência lateral(8). Isso foi demonstrado no escorregamento epifisário proximal do fêmur quando ocorre um deslocamento posterior da cabeça femoral e nos casos de fratura do colo do fêmur com consolidação em discreta deformidade em rotação(7,9).

O objetivo deste trabalho foi analisar, em espécimes anatômicos, alterações no colo femoral que pudessem indicar impacto femoroacetabular ou efeito cam.

Este trabalho foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina de Petrópolis.

MÉTODOS

Foram utilizados 199 fêmures da Faculdade de Medicina de Petrópolis/RJ. Foram excluídos os fêmures com deformidades prévias, sinais de fraturas ou desgaste da cabeça femoral. Dos espécimes anatômicos, 103 eram do lado direito e 96, do esquerdo. Os fêmures foram medidos para determinar o ângulo da anteversão do colo femoral (ACF), ângulo cervicodiafisário (CD), esfericidade da cabeça femoral em ântero-posterior e súpero-inferior, ângulo entre a epífise e o colo femoral anterior, ângulo entre a epífise e o colo em perfil, distância em ântero-posterior a 5 mm da junção cabeça e colo e distância em ântero-posterior da base do colo. Todas essas distâncias e ângulos foram medidos com paquímetro e goniômetro.

A tabela 1 fornece a média, desvio padrão (DP), mediana, mínimo e máximo das medidas e angulações dos fêmures do total da amostra.

Os espécimes anatômicos foram analisados por três avaliadores, em separado, para observar a frequência de impacto segundo o avaliador e o número de avaliadores. As tabelas 2 e 3 fornecem a frequência (n) e o percentual (%) do impacto por avaliador e por número de avaliadores, respectivamente.

Metodologia estatística

A análise estatística foi realizada pelo teste de Mann-Whitney para verificar se existe diferença nas medidas e angulações dos fêmures entre dois subgrupos, com e sem impacto, segundo três avaliadores. Foi utilizado teste não paramétrico, pois as medidas e angulações não apresentaram distribuição normal (distribuição gaussiana) devido à dispersão dos dados e/ou falta de simetria da distribuição. O critério de determinação de significância adotado foi o nível de 5%.

RESULTADOS

Este estudo teve como finalidade traçar um perfil geral dos 199 fêmures. As percentagens entre o cam e cabeça, base do colo do fêmur e cam e base do colo do fêmur e cabeça são demonstradas na tabela 4, nas figuras 1 (a e b) e 2 (a e b).

Nosso segundo objetivo foi verificar a existência de diferença significativa nas medidas e angulações dos fêmures entre os subgrupos com e sem impacto. A classificação de impacto foi calculada através de três critérios:

  • Impacto-1: pelo menos um avaliador declarou a presença de impacto (80 ossos);
  • Impacto-2: pelo menos dois avaliadores declararam a presença de impacto (32 ossos);
  • Impacto-3: os três avaliadores declararam a presença de impacto (11 ossos).

Utilizamos a classificação impacto-2 onde dois avaliadores declararam a presença de impacto no mesmo espécime anatômico.

A tabela 5 fornece a média, desvio padrão (DP), mediana, mínimo e máximo das medidas e angulações dos fêmures, segundo o subgrupo (com e sem impacto) e o correspondente nível de descritivo (p) do teste de Mann-Whitney para o impacto-2.

Observou-se que o subgrupo com impacto apresentou esfericidade Sl (p = 0,040), diâmetro 5mm (p = 0,0001) e cam-cabeça (%) (p = 0,0001) significativamente maiores e base-cam (%) (p = 0,0001) significativamente menor que o subgrupo sem impacto-2. Não existe diferença significativa, ao nível de 5%, entre os dois subgrupos para as demais medidas estudadas.

Nosso terceiro objetivo foi identificar o ponto de corte ótimo para o diâmetro 5mm da junção cabeça-colo, camcabeça (%) e base-cam (%) relacionado com impacto. A curva ROC (receiver operator characteristic) expressa a relação entre a sensibilidade e a especificidade, e pode ser usada para escolher o melhor ponto de corte (cutoff). Nesta amostra em estudo, segundo a curva ROC, identificou-se que diâmetro 5mm da junção cabeça-colo = 35,5, cam-cabeça (%) = 80 e base-cam (%) = 73 foram os pontos ótimos para o impacto segundo o critério 2.

A tabela 6 fornece as medidas de acurácia para os pontos de corte do diâmetro 5mm da junção cabeçacolo, cam-cabeça (%) e ao impacto.

DISCUSSÃO

As medidas testadas aqui tiveram como objetivo principal identificar e quantificar o contorno anormal da junção cabeça-colo e as possíveis variações observadas entre cabeça e colo femoral. Usando essas medidas, foram observadas diferenças entre os grupos com e sem alterações da região anterior entre a junção cabeça e colo.

As anormalidades entre a junção cabeça-colo nos indivíduos esqueleticamente maduros têm sido associadas com a osteoartrite do quadril(4,6,7,10,11).

Contanto que os pacientes não apresentem história prévia de doença no quadril, a etiologia da deformidade continua duvidosa, mas vários investigadores têm relacionado o deslocamento subclínico da epífise femoral com o risco de osteoartrite(5,7,11,12). Stulberg et al(11) introduziram o termo deformidade em pistol-grip para descrever a aparência radiográfica anormal do colo-cabeça nas incidências em ântero-posterior.

Eles notaram que essa deformidade é encontrada predominantemente em indivíduos ativos do sexo masculino e está presente em muitos pacientes com a tão chamada artrite idiopática, porém, não elucidaram o mecanismo patológico envolvido. Goodman et al(7) demonstraram que a principal deformidade no deslocamento subclínico da epífise femoral está no plano sagital, predominantemente anterior, e que sem uma definição quantitativa ou objetiva, descrições tais como pistol-grip e post-slip não podem ser usadas para determinar a gravidade da deformidade ou para distinguir formas normais das patológicas.

Em nosso estudo, dos 199 espécimes anatômicos analisados, não foi encontrado desvio significativo entre a cabeça e o colo femoral que pudesse justificar impacto anterior e, consequentemente, ser o principal fator do desenvolvimento da osteoartrite.

Crestani et al(2) demonstraram que o eixo do colo do fêmur indica claramente como mudanças em seu contorno podem afetar a função da superfície articular da cabeça do fêmur. Alargamento da região anterior do colo reduz a concavidade anatômica do colo, podendo ocasionar impacto. Até o presente momento, não foi definido um método aceitável para identificar os quadris que estão em risco ou critérios demonstrando a relação anormal entre a cabeça e o colo.

As incidências laterais são utilizadas para a quantificação do offset da porção ântero-lateral na junção cefalocervical-femoral e para verificar a esfericidade da cabeça femoral(13). Meyer et al(14) concluíram que as incidências de Dunn com 45° e 90° e a lateral cross-table são as mais precisas para essa avaliação. O offset na incidência cross-table é medido utilizando o método descrito por Eijer et al(15).

Murray(5) usou radiografias em ântero-posterior para caracterizar a deformidade da inclinação da cabeça femoral. Ele traçou uma linha no eixo do colo femoral usando o ponto médio entre o trocânter e a porção mais estreita do colo do fêmur como demarcações e, então, calculou a proporção da cabeça femoral, dividindo a largura da cabeça sobre o eixo.

A crítica a essa técnica é que ele não distinguiu um padrão entre a junção cabeça-colo femoral normal da anormal. Nötzli et al(16) em sua técnica, utilizando a imagem de ressonância magnética, traça uma linha na região mais estreita do colo femoral ao centro da cabeça. Após a margem anterior definida, é medida pelo ângulo "alfa". Além disso, a largura da junção cabeça-colo é medida em dois locais distintos. Utilizando essa técnica, eles demonstraram que nos pacientes com impacto de quadril havia significantemente menos concavidade na junção cabeça-colo femoral que nos quadris normais(16).

Nossos resultados demonstraram que nos 199 espécimes anatômicos, o subgrupo classificado como tendo impacto apresentava diâmetro a 5mm da junção e percentual cabeça-colo significantemente maior (p = 0,0001) e (p = 0,0001), respectivamente, que o grupo sem impacto.

Nessa amostra, também observamos que, segundo a curva ROC, os espécimes com relação de 80% ou mais entre a cabeça-colo e 73% ou menos da relação entre a junção cabeça-colo e a base do colo do fêmur apresentam possibilidade de desenvolver impacto femoral.

CONCLUSÃO

Nosso estudo mostrou que o efeito cam, causado por variações anatômicas da extremidade proximal do fêmur, se concentraram na junção cabeça-colo (%) = 80 e base do colo-junção cabeça-colo (%) = 73. Esses índices podem ser fatores preditivos do impacto. 

 

REFERÊNCIAS

 

1. Murphy S, Tannast M, Kim YJ, Buly R, Millis MB. Debridement of the adult hip for femoroacetabular impingement: indications and preliminary clinical results. Clin Orthop Relat Res. 2004;(429):178-81.
2. Crestani MV, Telöken MA, Gusmão PDF. Impacto femoroacetabular: uma das condições precursoras da osteoartrose do quadril. Rev Bras Ortop. 2006;41(8):285-93.
3. Ganz R, Parvizi J, Beck M, Leunig M, Notzli H, Siebenrock KA. Femoroacetabular impingement: a cause for osteoarthritis of the hip. Clin Orthop Relat Res. 2003;(417):112-20.
4. Tönnis D, Heinecke A. Acetabular and femoral anteversion: relationship with osteoarthritis of the hip. J Bone Joint Surg. Am 1999;81(12):1747-70.
5. Murray RO. The aetiology of primary osteoarthritis of the hip. Br J Radiol. 1965;38(455):810-24.
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7. Goodman DA, Feighan JE, Smith AD, Latimer B, Buly RL, Cooperman DR. Subclinical slipped capital femoral epiphysis: relationship to osteoarthrosis of the hip. J Bone Joint Surg Am. 1997;79(10):1489-97.
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9. Leunig M, Casillas MM, Hamlet M, Hersche O, Notzli H, Slongo T, et al. Slipped capital femoral epiphysis: early mechanical damage to the acetabular cartilage by impingement of the prominent femoral metaphysis. Arta Orthop Scand. 2000;71(4):370-5.
10. Murray RO. The aetiology of primary osteoarthritis of the hip. Br J Radiol. 1965;38(455):810-24.
11. Stulberg SD, Cordell LD, Harris WH, Ramsey PL, MacEwen GD. Unrecognized childhood hip disease: a major cause of idiopathic osteoarthritis of the hip. In: The Hip. Proc 3rd meeting of The Hip Society. St Louis: CV Mosby Co.; 1975. p.212-28.
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13. Shrader MW, Sucato DJ. Surgical dislocation with trochanteric osteotomy: a surgical approach for femoroacetabular impingement. Curr Opin Orthop. 2005;16(6):439-44.
14. Meyer DC, Beck M, Ellis T, Ganz R, Leunig M. Comparison of six radiographic projections to assess femoral head/neck asphericity. Clin Orthop Relat Res. 2006;(445):181-5.
15. Eijer H, Leunig M, Mahomed MN, Ganz R. Cross-table lateral radiograph for screening of anterior femoral head-neck offset in patients with femoro-acetabular impingement. Hip Intern. 2001;11:37-41.
16. Nötzli HP, Wyss TF, Stoecklin CH, Schmid MR, Treiber K, Hodler J. The contour of the femoral head-neck junction as a predictor for the risk of anterior impingement J Bone Joint Surg Br. 2002;84(4):556-60.

 


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